sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Daniel na cova dos Leões

Fé é a convicção plena dos fatos que se esperam e a certeza das coisas que não se veem. Ou se tem ou não se tem. A Bíblia diz que é o dom gratuito de Deus, as pessoas, que remove montanhas; eu acrescentaria dizendo que é fundamental para a vivificação permanente do homem, a paz interior e a segurança nossa de cada dia. 

Nada tem a ver com religião. Religião significa re-ligação, uma volta do homem ao sagrado da maneira mais equivocada possível, uma tentativa tola de explicar o indefinível, tocar o intangível e de ver exprimir o inefável. Kant dizia ser "absolutamente necessário se convencer da existência de Deus, mas nunca igualmente necessário que se demonstre." 

Um grande exemplo de fé é o de Daniel (no Antigo Testamento), que após inúmeras tentativas frustradas de sábios, adivinhadores, magos e outros “previsólogos”, fora chamado a presença do Rei Nabucodonosor, a fim de interpretar sonhos recorrentes que o perturbavam dias e noites. O jovem teve êxito no seu intento, e foi imediatamente aclamado príncipe da corte, o que logo despertou a inveja de muitos que, não achando ocasião contra ele, armaram uma cilada que o levou a dormir na cova com vários leões famintos. No dia seguinte Daniel estava ileso, sem nenhum arranhão. A sua fé o salvou. (Dan 3,45)

Nos dias de hoje, a história de Daniel pode soar completamente inverosímel. O homem moderno parece estar cada vez mais distante de si mesmo, e por extensão do que está fora de si, parece viver descolado da transcendência.
Sabiamente, nos admoestava Bob Marley em uma de suas canções: "...but now it`s too late, you see man have lost their faith." 

 
Mesmo assim, a façanha de Daniel, independentemente do caráter simbólico que possa assumir,  pode ser bastante inspiradora, já que muitas vezes nos vemos presos à outros "cárceres", e com "leões" muito mais violentos que o da passagem e, nesses momentos de turbulência, não são poucos os que sucumbem às circunstâncias.

Mas como o assunto é fé, e este é um terreno muito subjetivo, não há muito o que questionar, tentar impor ou preceituar, como já disse, é simples: Ou se tem ou não se tem. Na verdade é quase uma escolha que o homem faz , que se traduz, em última análise da seguinte maneira: Deixar vir à tona todas as suas potencialidades, ou se resignar com o que "acha" que tem. Lembram daquele carrinho de bate-bate do Tivoly Parque, que só andava direitinho porque estava ligado por um fio grande à um teto de arame? Assim caminha o homem de fé pela cidade, na carência ou na plenitude, alegre ou triste, pra cima ou pra baixo, não importa a variação, pois vive a plena certeza dessa ligação; seja ela qual for, de um Deus que está no mais alto dos céus, ou no amor dentro do seu coração.  

O homem de fé não precisa religar, não precisa ir buscar, não precisa conhecer nem entender nada, ele é diferente, ele viu o que ninguém vê, porque pra enxergar  não usou os olhos e os ouvidos, mas o coração e toda a sua alma, aceitou e assim preferiu viver: Integrado, livre e em paz.

Aquele que crê, nos momentos mais adversos enxerga além do alcance justamente porque não está desperdiçando energia em querer ver, e ‘compreende’ tudo simplesmente por não estar a fim de saber. Um ser espiritual simplesmente é.

                                                                  *      *     *

John Lennon dizia “que a vida é essa coisa que passa enquanto fazemos planos para o futuro”, eu penso que a vida plena nessa dimensão, aqui nesse planetinha pequeno, nos escapa quando fazemos força excessiva para saber. Isso me faz lembrar do nosso grande Mané Garincha, o anjo das pernas tortas. Alguém já se perguntou por que Garrincha foi o maior fenômeno da história do futebol? Garrincha só foi aquele jogador fora do comum, o gênio improvável, o que mais transcendeu a realidade nos gramados por que não estava entendendo absolutamente nada do que se passava. Jogar contra a Suécia e contra o São Cristóvão para ele era a mesma coisa. Na Copa do Mundo ou na várzea, quem ‘caísse’ pela lateral esquerda para marcá-lo não tinha sequer nome, era mais um João (como chamou a todos os seus marcadores).

Claro que, é justo e compreensível que nos chegue aquela dúvida: Como não saber se até a simples ideia do que somos é fruto do pensamento? Minha resposta pra isso, que nem sei se está certa é: Silenciando e deixando vir. Aceitar, mas aceitar na humildade, que tem coisas que jamais saberemos e tem coisas que não são mesmo pra gente saber. Diferentemente dos animais, o homem ganhou "asas" pra conhecer a si e ao o mundo, e voar até o mais alto dos céus, mas é justamente voo mais alto de sua mente que poderá impedi-lo de respirar o azul em todo seu esplendor.

O  conhecimento das coisas dessa vida, muitas vezes pode nos gerar até o efeito reverso do que a nossa expectativa nos faz crer. Garrincha provavelmente não se destacaria na copa de 58, se soubesse que do outro lado enfrentaria um dos mais temidos laterais da época. Como se diz na gíria popular, Garrincha, literalmente “não tomou conhecimento,  partiu pra cima e acabou com o jogo! Não dá nem pra dizer que o nosso “Mané” teve coragem, pois ele era de tal modo integrado a sua verdade, que o nível de confiança dele extravasava pelos poros e ele simplesmente ía, guiado pelo seu instinto.

As vezes o instinto humano  pode gerar uma confiança que supera qualquer entendimento que se possa ter alcançado. O instinto se avizinha a intuição e nos dá movimento, ao passo que o conhecimento muitas vezes pode nos paralisar. 

É semelhante ao sujeito que, pra fugir do afogamento, nada a braçadas longas no meio do redemoinho. O efeito é sentido, as braçadas são animadoras e ele se enche de esperança, de fato está avançando um pouco, usando toda a técnica que aprendeu, mas logo vem uma onda, e ele terá que dar novas braçadas e mais outras tantas, até cansar de vez e perceber que é inútil continuar, pois sequer saiu do lugar no meio de  tanta força que fez.

O homem de fé é o matuto da pele rachada, que consegue sentir o mar pela cor, pelo cheiro e o barulho, tem a percepção sensorial de que aquela área mais clara e remexida é pra ser “esperada” e não “passada” e ele apenas se entrega, sua  sintonia é perfeita, naturalmente será transportado para águas mais tranquilas e, aí sim, nadará com todo seu potencial em direção a praia.

A tentativa de transcender em vida quando podemos explicar, conceber, associar, fazer sentido é, talvez, uma das maiores ilusões desse mundo; de fato podemos experimentar, vez por outra, um conforto muito grande para alma, mas ele é temporário, findará na medida em que a mente humana for de encontro a novas inquietações e assim sucessivamente...

Voltando ao jovem Daniel, ele não conhecia o perigo que a vida colocara diante de seus olhos, não conhecia os leões e muito menos o cárcere, não se preparou para agir numa hora daquelas. Naquele momento de angústia, ele mau podia enxergar direito, mas uma coisa ele tinha certeza: Tudo o que ele era e o que nem sabia que podia ser, estava ali com ele. Antes de conhecer, Daniel confiou .
 
" ..tão certo quanto o erro de se barco a motor e insistir em usar os remos, é o mal que a água faz quando se afoga e o salva-vidas não está lá por que não vemos."

                                          (Daniel na cova dos Leões, Legião Urbana)

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