Apesar do histórico êxito na diminuição da miséria e da desigualdade no país, ampla parcela da classe média jamais tomou consciência do avanço civilizacional que ele representou. Daí o corte classista das últimas eleições federais (2006 e 2010), com a direitização da classe média tradicional, invisibilizada no interior de uma suposta “classe C”.
As manifestações de rua do último mês são
expressões das contradições imanentes desse arranjo político. A classe média
que saiu de casa não o fez na defesa de qualquer direito que se encontrava em
xeque. Tampouco porque já sente na pele os supostos limites de um modelo
econômico que a grande imprensa, há anos, insiste em afirmar que se tornou
insustentável. A variedade de reivindicações difusas e abstratas é, antes,
correlata dessa orfandade política a que ela, a classe média, foi relegada nos
últimos anos. Não é de se estranhar, portanto, que, na falta de um discurso
estruturado, ela apenas repita certas palavras de ordem vazias veiculadas pela
imprensa ou por setores da direita
O narcisismo incurável da classe média: A
Revolta do umbigo!
Se buscarmos o denominador comum dessas
reivindicações, chegamos a duas características básicas. Por um lado, são
pautas consensuais no debate político brasileiro: mais investimentos em saúde e
educação, combate à corrupção, gasto responsável do dinheiro público, defesa
dos direitos de minorias e reforma do sistema político no sentido de uma maior
participação direta dos cidadãos. Elas, por vezes, podem ser apresentadas com
alguma coloração conservadora, como na defesa da redução do Estado; no entanto,
são pautas, em si, progressistas. Em si, nada há de conservador na defesa de um
Estado mais responsável nos seus gastos ou no combate à corrupção. Por outro
lado, essas pautas são apresentadas de modo abstrato e pouco articuladas: pouco
se diz sobre a forma de encaminhamento político dessas demandas. Por vezes,
parecem apenas responder a anseios narcisistas de “dormir em paz com o dever
cívico cumprido”.
Direita midiática joga justamente com
essa classe média
Parte da direita e da grande mídia
pretende manter o debate nesse nível abstrato, asséptico. Daí seu discurso “boa
praça” que apenas projeta o narcisismo dos manifestantes: “o gigante acordou”,
“a avenida Getúlio Vargas está linda”. Ela não quer ir para o particular porque
isso implicaria colocar em xeque seus próprios interesses. Ela tampouco
ganharia com a instabilidade institucional: ao que tudo indica, a tendência é
tentar manter essa “insatisfação geral” em voga até que, nas eleições do
próximo ano, um voto contra “tudo que está aí” leve, nas urnas, a uma mudança
de governo.
Classe média não sentiu a melhora do país; nossa elite
não suporta dividir o bolo
“quase todas as bandeiras políticas
levantas pelo PT nos últimos 10 anos e capazes de mobilizar o apoio popular
direcionaram-se à classe trabalhadora e, em especial, aos seus membros de mais
baixa renda: programas de assistência social como o PBF, o “Brasil sem
miséria”, o “Luz para todos”, o “Minha Casa Minha Vida”, a garantia dos
direitos trabalhistas dos empregados domésticos, entre outros, não tinham
qualquer apelo para a classe média. Esta tornou-se secundária no interior desse
arranjo” Seja no que diz respeito à política de transferência de renda, seja no
que diz respeito às políticas de educação e saúde, o avanço nos investimentos
públicos dos últimos anos não foi palpável para a classe média. Existe, por
isso, uma base material para sua insatisfação, expressa nas ruas. Na
melhor das hipóteses, ela permaneceu indiferente às bandeiras políticas
levantadas; na pior, apenas viu nesses programas uma política populista de um
governo que distribuía “esmolas” e, assim, onerava indiretamente sua renda (a
resistência ao PBF e aos direitos dos empregados domésticos foi sintomática
dessa percepção).
Esquerda tem que ir buscar a classe média
de volta
À esquerda cabe olhar para sua
experiência histórica e para suas contradições presentes. A tendência é que,
daqui para frente, alianças de cúpula e o êxito de políticas sociais, sem a
correspondente mobilização social que envolva a classe média, não serão
suficientes para garantir a hegemonia política do governo. Para que a
mobilização dessa classe não signifique retrocesso, a esquerda deve
urgentemente propor e sustentar pautas concretas para o encaminhamento político
das demandas levantadas nas últimas semanas. É nesse espaço entre os desejos
legítimos expressados nas ruas e a sua viabilização que a esquerda deve
posicionar-se. A tarefa é árdua porque envolve a recuperação de uma prática
abandonada pelo setor dominante da esquerda: a disputa pela hegemonia cultural
e ideológica da classe média e da sociedade.
Sem essa politização do dia a dia, a
tendência é que a classe média permaneça, com alguma razão, indiferente aos
esforços progressistas de avanço nos direitos sociais; afinal, o êxito dessas
políticas nos últimos anos passou ao largo da sua realidade de classe. A
vitória do Movimento Passe Livre acabou de mostrar-nos a viabilidade dessa
política de “queixas do cotidiano” hoje. É preciso digerir essa experiência e
reproduzi-la conscientemente.Leia na íntegra
Nenhum comentário:
Postar um comentário