Tempos atrás uma jornalista levou, sem autorização,
um bebê de uma maternidade para provar que o local não tinha segurança.
Justificou-se que aquilo era uma reportagem. Não, não era. Era sequestro.
Lembro-me dessa história quando li a justificativa do diretor de teatro Gerald
Thomas para a cena que protagonizou enfiando a mão sob o vestido de Nicola
Bahls sem permissão. ”A mulher não é um objeto. Mas não deveria se apresentar
como tal”, escreveu em sua defesa. Justificou-se que era um alerta à hipocrisia
da sociedade, uma performance intimidatória. Não, não era. Era violência.
“Essa imprensa careta de um sensacionalismo careta.
A gente leva tudo da brincadeira e eles não”, reclamou após toda a polêmica levantada. O apresentador do
“Pânico”, Emílio Surita, concordou: “estamos em um programa de humor e vamos
fazer brincadeiras”.
Brincadeira, brincadeiras… Pedi a seis
comunicadoras (para permanecer no mesmo campo de atuação de Gerald e Emílio) e
militantes pelos direitos das mulheres explicarem o que é machismo para quem
não vê problemas no comportamento do diretor de teatro. Seguem as respostas:
E
se você, amiga jornalista, sentisse as mãos de um colega apalpar sua bunda
enquanto vocês sobem o elevador de um prédio a caminho de mais uma entrevista?
Putz, talvez você tenha engordado e aquela calça jeans tenha ficado muito
apertada… mais atenção da próxima vez! E você, professora, o que acharia se, no
meio de uma reunião com o diretor da escolar, ele espiasse o seu decote (que
você jurava que era discreto) e, na sequência, arrumasse um jeitinho de roçar
os braços nos seus seios ao se abaixar para apanhar uma caneta? Puxa, talvez
você tenha exagerado… aquele decote não era tão discreto. Ou você, doutora
advogada, que no meio da reunião sentiu os pés do colega sentado ao seu lado
subir por suas canelas, e de repente as mãos dele já estavam nos seus joelhos…
por que foi mesmo que você inventou em ir de saia a uma reunião? E você,
estudante, que saiu da aula às 11 da noite e, naquela esquina escura, já perto
de casa, foi surpreendida por um cara que tapou tua boca, levantou teu vestido,
te segurou com força e meteu o pau na tua vagina? Quanta dor! Mas não importa,
a culpa foi tua, que usava aquele vestido curto tão tarde… Machismo é muitas
coisas. Mas é sobretudo uma violência apoiada na naturalização das
desigualdades sociais entre homens e mulheres. É o machismo que, diariamente,
tenta se apropriar do nosso corpo e nos subtrair algo que é caro a qualquer ser
humano: a nossa autonomia.
Mariana Pires, jornalista
Machismo
é pensar que o corpo feminino é um território livre para os homens se divertirem,
que está à disposição sempre que quiserem entrar. É encarar que um vestido
curto e decotado dá permissão para apalpar uma mulher. É se considerar esperto
por supostamente estar invertendo a postura inconveniente e intimidadora dos
apresentadores de um programa de TV, quando na realidade está reproduzindo a
cultura do estupro, que lutamos para denunciar e eliminar. É achar graça de uma
situação que invade a intimidade de uma mulher sem o consentimento dela, é
considerar uma brincadeira válida “conferir” se a entrevistadora não é uma
travesti, causando visível constrangimento a ela. É achar que foi uma ação
contra a caretice dos dias de hoje, que fez uma grande performance artística,
que abriu os olhos para a hipocrisia da nossa sociedade, quando o que fez foi
simplesmente reiterar em frente às câmeras de TV, e banalizar ainda mais, a
violência sexual que as mulheres enfrentam cotidianamente, nas ruas, no
trabalho, dentro de casa.
Fernanda Sucupira, jornalista
O
que Gerald Thomas e aquele babaca que passou a mão na sua bunda no ônibus
lotado tem em comum? Fácil: os dois acham que têm o direito de violar o corpo
da mulher da maneira como bem entenderem. A diferença é apenas o glamour com
que tal ação é executada. No primeiro caso, o artista utilizou um argumento
relativamente elaborado para forçar sua entrada embaixo da saia da
entrevistadora. Segundo ele, o programa “Pânico” objetifica a mulher e,
portanto, nada mais natural (?) que protestar contra isso fazendo exatamente a
mesma coisa e sendo tão ou mais perverso. Mas, ao fim e ao cabo, o que ele fez
não é diferente de todo assédio cotidiano que as mulheres sofrem porque parte
do mesmo princípio: vou usar o corpo da mulher para provar meu ponto de vista,
seja bulinando, estuprando, batendo ou torturando. E isso é machismo.
Maíra Kubik Mano, jornalista e cientista política
O
comediante entra na livraria vestido como Adão – é assim que ele trabalha, dia
após dia, no seu programa de humor. Usa apenas uma sunguinha cor da pele, com
uma folha plástica de parreira cobrindo a genitália. A autora do livro, moça
que gosta de fazer polêmica, faz pose de intellectual, mas fala uns palavrões
(de nível aceitável, claro, que ela sabe bem como manejar a mídia), o recebe
simpaticamente. De repente, Zaz!, ela enfia a mão por baixo da folha de
parreira e lhe aplica um pouco gentil afago nos bagos. Consegue imaginar a
cena? Não? E sabe por que não? Porque, no mundo este em que vivemos,
determinado pela soberania do macho sobre a fêmea, é inaceitável que uma mulher
exponha um homem a esse ridículo. Tão inaceitável que você sequer consegue
imaginar que existe uma mulher capaz de dar um apertão no saco alheio em rede
nacional de TV. Assim, só pra denunciar a cotidiana e dolorida violência contra
o homem, não é?
Cristina Charão, jornalista
Machismo
é um sistema de mentiras que enfraquece o senso crítico, fazendo com que você
veja o “mal” em um lugar e o “bem” em outro, se tornando um
consumidor-perpetrador que não questiona injustiças sociais. Vejo pessoas
demonstrando isso no caso do Gerald Thomas. Dizer que não houve machismo na
atitude dele não é dar uma opinião de autoria própria. Não se ganha nada em ver
agressões misóginas como “normais”, ganha-se apenas um falso e frágil senso de
pertencimento à nossa sociedade patriarcal. Por questões de sobrevivência, a
maioria das mulheres é obrigada cotidianamente a transformar e quebrar as
regras dessa mesma sociedade machista. É impossível conter essa força. Aos
poucos, todos estão se dando conta que feminismo é também uma ciência econômica
e social. Mesmo dando outros nomes a ele, o feminismo é praticado por todas as
mulheres brasileiras.
Elisa Gargiulo, documentarista
O
machismo se manifesta de inúmeras – e cada vez mais surpreendentes – maneiras.
Mas, uma vez presente, nem o supostamente mais subversivo artista “escapa” de
uma de suas formas mais tradicionais: a transformação do corpo da mulher em um
objeto a ser utilizado e explorado pelo homem a seu bel prazer. Gerald Thomas
pretendeu “responder” a um “jogo de sedução” de Nicole Bahls, mas o fez
cometendo uma violência tradicional, no melhor estilo Idade Média, ainda em
voga, e nada engraçada. Não ver problemas neste comportamento também não
surpreende. O machismo é tão estruturante da identidade brasileira – de homens
e mulheres, diga-se de passagem – que há quem veja só piada numa cena dantesca
como esta. O humor, neste caso, é um aliado importante da perpetuação do
machismo em nossa sociedade. Ele cria uma espécie de redoma de vidro dentro da
qual tudo é permitido, inclusive enfiar a mão entre as pernas de uma
entrevistadora contra a sua vontade. Não há como ser mais explícito e violento.
Manter um sorriso sacana no rosto não muda a agressividade das mãos. E não
enxergar isso também é uma manifestação de machismo. Quem não vê onde está o
problema, é hora de revisitar seus valores e práticas.
Bia Barbosa, jornalista
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