quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Uma nova redenção

"Será que já raiou a liberdade ou se foi tudo ilusão? Será que a Lei áurea tão sonhada e há tanto tempo assinada não foi o fim da escravidão? Hoje, dentro da realidade onde está a liberdade, onde está que ninguém viu?  Moço não se esqueça que o negro também construiu as riquezas do nosso Brasil.”

No ano em que se comemorava o centenário da abolição da escravatura, a Vila Isabel vencia o carnaval na Marquês de Sapucaí com uma linda homenagem ao herói abolicionista Zumbi dos Palmares. Nesse mesmo ano de 1988, a Mangueira levava para avenida, em tom de louvor e denúncia, aquela que é considerada por muitos a mais bela entre as mais belas de suas composições.
Era nossa festa popular de maior expressão trazendo à baila uma questão que a sociedade ainda tinha muita dificuldade de olhar: a situação dramática vivida pelo negro após a abolição da escravatura, a chamada "liberdade vazia", onde os meios necessários para sua inserção social não lhes foram apresentados com clareza, ou melhor, lhes foram intencionalmente negados. 
Na primeira metade do século passado, Florestan Fernandes, na contramão de um senso comum que só tinha olhos para um país miscigenado, foi um dos primeiros a mostrar essa grave situação social e humanitária que vivíamos. Depois, da segunda metade em diante, foi a vez do geógrafo Milton Santos que, indo ainda mais a fundo, procurou revelar a face  cruel do “racismo tapinha nas costas" do brasileiro - onde facetas obscurecíveis do preconceito funcionam como mecanismos de controle mantenedores da desigualdade e conseguem ser ainda mais eficazes que a velha e vergonhosa chibata.
Hoje, quase trinta anos depois, o quadro da desigualdade racial no Brasil, apesar de ainda dramático,  apresenta sensíveis sinais de melhora. A semente plantada por Zumbi cresceu e já começa a sazonar seus frutos. O negro, mais uma vez na história, chamou pra si a ‘responsa’,  numa luta de igual teor de bravura, só que agora no plano ideológico,  impulsionando ações afirmativas de forma ousada, na raça e na coragem, fazendo acontecer. 
Valeu Zumbi, seu grito forte ecoa agora pelos quatro cantos do país, chacoalhando as bases de uma sociedade onde um dia a cor da pele não determinará absolutamente mais nada, um dia onde estaremos de fato juntos e misturados, o dia onde estas palavras perderão o seu sentido e poderemos finalmente dizer: somos todos cidadãos brasileiros.
E o samba da mangueira, que começa convidando à reflexão, termina de maneira alegre e festiva, como não poderia deixar de ser:
"O negro samba negro joga capoeira, ele é o rei na verde e rosa da Mangueira!"

quarta-feira, 11 de março de 2015

Não há mais como deixar de olhar para as nossas raízes

Que boa parte da classe média se tornou reacionária nos últimos anos acredito que, a essa altura, ninguém mais discorde. Mas quando Paulo Freire, um dos educadores mais importantes da nossa história, é esculhambado nas ruas dessa maneira, não resta dúvida que a coisa precisa ser investigada com mais profundidade. Acho que se aquelas pessoas soubessem quem foi esse homem, a dimensão de sua pedagogia, a importância de suas ideias para a educação brasileira - naquilo que talvez seus próprios filhos hoje estejam se beneficiando para no futuro não repetir gestos lamentáveis como esses - jamais fariam isso. Um fato como esse é muito preocupante, pois sinaliza (ainda que simbolicamente) para aniquilação do último bastião do maior dos valores civilizatórios, creio eu, que podem redimir essa nação: a educação crítica e humanista, proposta por Freire.
Nesse sentido, eu acho que se quisermos compreender com mais clareza o que está acontecendo com a nossa sociedade, acredito ser fundamental recorrer a um velho clássico da Sociologia brasileira: "Casa Grande & Senzala", do pernambucano Gilberto Freyre. Certamente encontraremos ali boas explicações sobre como construímos a nossa socialização, como olhamos e subjugamos os negros, os desfavorecidos sociais, ao mesmo tempo em que conseguímos, com criatividade ímpar, estabelecer uma maneira de nos relacionar baseada numa 'cordialidade' completamente falsa. Um tipo de socialização na base do "tamo junto e misturado" que, jamais teve o sentido de inclusão, mas sim de diluir eventuais conflitos que poderiam emergir da violência absurda que se escondia nessas relações.
A partir da última década, um "pequeno" arranhão foi dado nessa estrutura - mesmo sem alterar as suas bases - e isso já foi motivo para enorme desconforto e instabilidade. Dividir aeroporto ou filas de exposição no MAM com o porteiro, ver a empregada doméstica se empoderando em seus direitos trabalhistas, o gari se organizando e deixando de recolher o lixo, tudo isso é algo muito novo, totalmente inusitado que deu um sacolejo nessas relações baseadas no mandonismo, no tapinha nas costas e alegria geral - "o pobre é muito gente boa, divertido pra caramba, a gente se dá muito bem; eu, uma pessoa muito caridosa, inclusive ajudo a sua filha com material escolar todos os anos, desde que ela fique lá, e não venha querer dividir agora a universidade com os meus filhos, aí já é demais".
Ainda assim, o nosso caso é tão complexo, tão singular, que analisar o que está acontecendo só observando a estrutura é pouco. E é aí que entra o segundo fator, acredito, decisivo: A influência nefasta e corrosiva da mídia hegemônica com seus valores e métodos de persuasão. Durante quase uma década os principais veículos de comunicação se encarregaram de pegar o cidadão já assustado com essa "pequena revolução" e entupir-lhes as veias, artérias e até a sua alma de programas de péssima qualidade, bastante violência (que vai de um tapa no Big Brother até a forma como falam da inflação do tomate) e um pensamento único ultra-liberal, sempre o mais superficial possível, baseado em muita desinformação.O resultado disso é o medo, o pânico, a confusão ideológica, tudo isso que foi penetrando em sua subjetividade até chegar a esse assustador estado de desespero que temos testemunhado por aí.
E não menosprezemos o que está acontecendo. Há um clima de insanidade geral tomando conta da nação. São pessoas agredindo as outras de todas as maneiras, gente chorando em videos, pedindo socorro aos militares, gente escrevendo carta pra embaixada americana intervir em nosso país, batendo panela e xingando palavrões sexistas ao lado dos filhos, tem relatos de mordida nas ruas, gente surtando em posto de gasolina, etc. Há muito sofrimento envolvido, as pessoas não estão teatralizando, essa dor existe, é da alma, é coletiva; talvez até sejam gritos de dor que carregam o peso da ancestralidade, a nossa história triste de dominação - um pouco do sofrimento e da morte dos índios, da escravidão do negro, das torturas, todos esses 'demônios' voltando agora e explodindo no inconsciente coletivo de uma parcela da população.
Enfim, vale a pena voltar a "Casa Grande & Senzala". Um clássico obrigatório da nossa Sociologia e que certamente ajudará numa compreensão maior sobre o atual momento brasileiro que, mais a frente, quando tudo isso passar ( e vai passar) será também objeto de estudo, assim como são hoje essas outras páginas infelizes da nossa História. Prefiro olhar pra esses gritos e ver neles a certeza de que o nosso corpo social está se renovando. O futuro do país finalmente começou a ser construído de uma outra maneira; alguns vícios ainda persistem e vamos combatê-los com pressão nas ruas pelas mudanças necessárias; mas com todos os problemas que ainda temos, essa reação de parte da sociedade sinaliza que estamos no caminho certo.