Por Adilson Filho
Confesso que cortei um dobrado para conseguir formar opinião a respeito dessa polêmica cabeluda apelidada na mídia de "Batalha das biografias". Procurei ler, me inteirar sobre o assunto por onde pude, mas não foi nada fácil. Acho que é um dos assuntos mais difíceis que me lembro, de tomar uma posição. O embate entre liberdade de expressão, o grande pilar da democracia desde a Revolução Francesa, e a preservação da vida privada, a garantia que o indivíduo tem da ditadura coletivista quando esta invade a sua última reserva de proteção da identidade, é briga de cachorro grande, difícil de se posicionar de imediato.
Minha
inclinação inicial era a de que se proibisse terminantemente biografias não
autorizadas. Acho que a vida pessoal, de quem quer que seja, deve ser
absolutamente sagrada. Mas, refletindo mais sobre o assunto, fui mudando aos
poucos meu pensamento.
Continuo
a favor da proibição, mas creio que para essa ser efetiva e universal deve vir
também acompanhada de outras medidas contra os abusos que podem causar estragos
não só na imagem e na honra, mas na integridade física, financeira e até
psicológica das pessoas.
Quem
não se lembra do caso da Escola Base em que os donos foram linchados na mídia,
acusados de pedofilia, e no final de todo aquele escarcéu, julgados inocentes
de tudo o que lhes imputaram. Suas vidas estão arruinadas até hoje.
E
no caso do livro de Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, onde a mídia e
muitos formadores de opinião foram a favor de que o MEC não fizesse sequer uma
nota de referência a trechos de racismo explícito. Os danos que isso pode
causar numa criança negra, ainda em formação de sua identidade, podem ser
indeléveis, muitos alegaram.
E
o que dizer do humor politicamente incorreto, onde piadas homofóbicas, outras
envolvendo estupro, nazismo e tudo de mais abjeto "passam batidas",
não se respeitando o direito das mulheres, judeus e demais minorias?
E
os textos e artigos falsos que circulam aos montes por aí na internet e quem
ninguém mais sabe quem escreveu nesse "quem é quem alucinado" que se
tornou a rede.
E
as falsas informações, os boatos, as montagens, as notícias inventadas no
facebook. Dia desses saiu uma lista das 10 maiores enganações que as pessoas
caíram como um pato compartilhando, se envolvendo e até se mobilizando para
ajudar. De gente "morta" que ainda está viva, a lei que nunca
existiu, bêbado famoso que jamais tomou nada além de refrigerante, etc.
Enfim,
pensando de forma mais abrangente, sou a favor sim de que vida privada seja
preservada, mas que isso venha ensejado numa garantia total ao direito a vida
da pessoa humana em toda a sua plenitude.
Aí
que entra a questão (por isso é um caso complexo e exige de nós uma reflexão
bastante cuidadosa). Vivemos numa sociedade aberta, jamais, na história da
humanidade se experimentou tanta liberdade como nos dias atuais. Somos todos
públicos e essas fronteiras (com o privado), principalmente depois do advento
das redes sociais, estão cada vez mais se diluindo.
Não
vejo isso com tanto otimismo como algumas pessoas, muito pelo contrário, sou
bastante temerário desse excesso de invasão e evasão da vida privada. Acho uma
coisa pesada (espiritualmente falando) a profusão de flashes, paparazzis de si
mesmos nesse gigantesco mercado das notícias privadas, onde cada um de nós, de
alguma forma, se expõe para o mundo e espia o mundo dos outros. Como disse de
forma brilhante o filósofo Zygmunt Ballman, analisando o fetichismo da
mercadoria em Marx, nós nos transformamos hoje na própria mercadoria,
empacotada, embalada para o consumo alheio.
Faço
essa ponderação para mostrar que, pensando melhor, começo a perceber que a
minha vontade dentro dessa estória, não passa de uma utopia na sociedade
moderna . É impossível dar conta hoje de tanta usurpação da liberdade, falta de
bom senso, mentiras, leviandades, blasfêmias, agressões de imagem etc. O tecido
social está esgarçado a tal ponto que já não conseguimos mas sequer perceber as
evasões e as invasões nesse caldeirão alucinado de vozes, falas e imagens que
consumimos e somos consumidos no "mundo da representatividade" que
escolhemos viver como grupo social. Nossa sociedade escolheu, através das
ferramentas que dispõe, viver no mundo da ilusão. Realizar trocas não pelo
coração e pela intuição, mas pela imagem que as pessoas vendem de si mesmo no
mercado das ilusões.
Sendo
assim, concluo dizendo que, na minha visão romântica, permaneço contra a
biografias não autorizadas, mas na minha visão realista, pé no chão, acho
que elas devem ser liberadas, simplesmente por ser impossível dar conta de tudo
que (justa e compreensivelmente, ressalte-se) teria que vir a
reboque.
Acho
que faz parte do processo civilizatório a humanidade de tempos em tempos ir
parando para refletir e avaliar a possibilidade de novas formas de convívio
mais adequadas a seu tempo histórico. Quem sabe talvez não estejamos precisando
mesmo ser provocados (no bom sentido) a nos tornar sujeitos mais críticos e
reflexivos? Sujeitos que não acreditem em tudo aquilo que se publica e se fala
por aí nessa avalanche informacional que se tornou o nosso mundo. Sujeitos que
desenvolvam melhor sentidos como o olfato, o tato e a visão, que possam sentir
melhor o cheiro das pessoas, olhar nos seus olhos, tocar no seu coração.
Estamos todos quase que enfeitiçados pela ditadura da visão, onde os excesso de
flashes coloridos sobre o outro e sobre nós mesmos, de uma certa forma nos
limita e nos sabota enquanto seres sociais plenos que somos.
O
filósofo Leandro Konder dizia a pouco tempo atrás que a sociedade moderna
estava se caracterizando "pela atrofia da capacidade de duvidar". Ele
disse isso numa era pré-redes sociais. Se de fato ele tinha razão há 15 anos, e
acredito piamente que tinha, e se isso foi recrudescendo, vocês conseguem notar
a enorme distância, o gigantesco fosso que se formou entre o sujeito e o
conhecimento? Num mundo fantasioso das mil versões e verdades, onde a produção
de discursos e efeitos imagéticos foi democratizada de forma veloz nas
redes sociais, a capacidade crítica das pessoas não pode de jeito nenhum
caminhar na direção oposta. Mais do que um contrassenso, seria desperdiçar uma
oportunidade histórica para crescermos e evoluirmos de forma saudável do ponto
de vista do conhecimento compartilhado.
Assim,
agora ainda mais convicto da minha opinião, penso mesmo que deve-se mesmo
liberar as biografias e tudo o mais, protegendo apenas as crianças e o que
possa estar de alguma forma relacionado a chaga da escravidão que, a meu ver,
deveria ser encarada aqui no Brasil como o Nazismo na Alemanha.
Acho
que, não tem mais jeito, a sociedade terá mais hora menos hora que se adaptar a
essa nova realidade que é inexorável. Todos falamos o que quisermos em todos os
canais e fóruns de que dispomos. Mídia oficial, biógrafos, escritores,
blogueiros, cidadãos comuns sem seus facebooks e twitters, somos todos públicos
e produzimos visões e versões sem nenhuma restrição ou filtro. Duvidar do que
se ouve, ir checar, correr atrás das informações, conhecer melhor o ser humano
por trás daquela pessoa que aprendeu "a jogar o jogo" e se produziu
para consumo virtual, pode ser um grande passo civilizatório no país das
adesões imediatas, com uma população de baixo grau de criticidade, das mais
manipuláveis do mundo.
Os
nascidos nessa nova sociedade, aprenderão a lidar com isso. Nas salas de aula
os alunos serão orientados por seus mestres a duvidar de tudo, a questionar as
fontes ir atrás do conhecimento, saber quem são as pessoas, senti-las mais de
perto, na conversa de banco de praça, método antigo, mas que nem toda
tecnologia que chegamos conseguiu inventar melhor. Saberão que tudo o que se
diz, se escreve e se posta deve ser criticado. Uma nova educação surgirá, mais
democrática e de qualidade. E aos mais antigos, como eu, que se incomodarem com
versões fantasiosas que porventura possam ferir a sua honra, fica a sugestão
daquele velho e famoso grego das palavras sábias. Quando questionado pelos seus
discípulos se não iria reagir as pessoas que estavam o difamando pela cidade,
Sócrates apenas disse: "Não farei nada, pois o que elas proferem não diz
respeito a mim"
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