segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Luis Nassif Online

Confesso que cortei um dobrado para conseguir formar opinião a respeito dessa polêmica cabeluda apelidada na mídia de "Batalha das biografias". Procurei  ler, me inteirar sobre o assunto por onde pude, mas não foi nada fácil. Acho que é um dos assuntos mais difíceis que me lembro, de tomar uma posição. O embate entre liberdade de expressão, o grande pilar da democracia desde a Revolução Francesa, e a preservação da vida privada, a garantia que o indivíduo tem da ditadura coletivista quando esta invade a sua última reserva de proteção da identidade, é briga de cachorro grande, difícil de se posicionar de imediato.

Minha inclinação inicial era a de que se proibisse terminantemente biografias não autorizadas. Acho que a vida pessoal, de quem quer que seja, deve ser absolutamente sagrada. Mas, refletindo mais sobre o assunto, fui mudando aos poucos meu pensamento. 

Continuo a favor da proibição, mas creio que para essa ser efetiva e universal deve vir também acompanhada de outras medidas contra os abusos que podem causar estragos não só na imagem e na honra, mas na integridade física, financeira e até psicológica das pessoas. 

Quem não se lembra do caso da Escola Base em que os donos foram linchados na mídia, acusados de pedofilia, e no final de todo aquele escarcéu, julgados inocentes de tudo o que lhes imputaram. Suas vidas estão arruinadas até hoje. 

E no caso do livro de Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, onde a mídia e muitos formadores de opinião foram a favor de que o MEC não fizesse sequer uma nota de referência a trechos de racismo explícito. Os danos que isso pode causar numa criança negra, ainda em formação de sua identidade, podem ser indeléveis, muitos alegaram.

E o que dizer do humor politicamente incorreto, onde piadas homofóbicas, outras envolvendo estupro, nazismo e tudo de mais abjeto "passam batidas", não se respeitando o direito das mulheres, judeus e demais minorias?

E os textos e artigos falsos que circulam aos montes por aí na internet e quem ninguém mais sabe quem escreveu nesse "quem é quem alucinado" que se tornou a rede. 

E as falsas informações, os boatos, as montagens, as notícias inventadas no facebook. Dia desses saiu uma lista das 10 maiores enganações que as pessoas caíram como um pato compartilhando, se envolvendo e até se mobilizando para ajudar. De gente "morta" que ainda está viva, a lei que nunca existiu, bêbado famoso que jamais tomou nada além de refrigerante, etc.

Enfim, pensando de forma mais abrangente, sou a favor sim de que vida privada seja preservada, mas que isso venha ensejado numa garantia total ao direito a vida da pessoa humana em toda a sua plenitude. 

Aí que entra a questão (por isso é um caso complexo e exige de nós uma reflexão bastante cuidadosa). Vivemos numa sociedade aberta, jamais, na história da humanidade se experimentou tanta liberdade como nos dias atuais. Somos todos públicos e essas fronteiras (com o privado), principalmente depois do advento das redes sociais, estão cada vez mais se diluindo.

 Não vejo isso com tanto otimismo como algumas pessoas, muito pelo contrário, sou bastante temerário desse excesso de invasão e evasão da vida privada. Acho uma coisa pesada (espiritualmente falando) a profusão de flashes, paparazzis de si mesmos nesse gigantesco mercado das notícias privadas, onde cada um de nós, de alguma forma, se expõe para o mundo e espia o mundo dos outros. Como disse de forma brilhante o filósofo Zygmunt Ballman, analisando o fetichismo da mercadoria em Marx, nós nos transformamos hoje na própria mercadoria, empacotada, embalada para o consumo alheio. 

Faço essa ponderação para mostrar que, pensando melhor, começo a perceber que a minha vontade dentro dessa estória, não passa de uma utopia na sociedade moderna . É impossível dar conta hoje de tanta usurpação da liberdade, falta de bom senso, mentiras, leviandades, blasfêmias, agressões de imagem etc. O tecido social está esgarçado a tal ponto que já não conseguimos mas sequer perceber as evasões e as invasões nesse caldeirão alucinado de vozes, falas e imagens que consumimos e somos consumidos no "mundo da representatividade" que escolhemos viver como grupo social. Nossa sociedade escolheu, através das ferramentas que dispõe, viver no mundo da ilusão. Realizar trocas não pelo coração e pela intuição, mas pela imagem que as pessoas vendem de si mesmo no mercado das ilusões.  

Sendo assim, concluo dizendo que, na minha visão romântica, permaneço contra a biografias não autorizadas, mas na minha visão realista, pé no chão,  acho que elas devem ser liberadas, simplesmente por ser impossível dar conta de tudo que (justa e compreensivelmente, ressalte-se)  teria que vir a reboque. 

Acho que faz parte do processo civilizatório a humanidade de tempos em tempos ir parando para refletir e avaliar a possibilidade de novas formas de convívio mais adequadas a seu tempo histórico. Quem sabe talvez não estejamos precisando mesmo ser provocados (no bom sentido) a nos tornar sujeitos mais críticos e reflexivos? Sujeitos que não acreditem em tudo aquilo que se publica e se fala por aí nessa avalanche informacional que se tornou o nosso mundo. Sujeitos que desenvolvam melhor  sentidos como o olfato, o tato e a visão, que possam sentir  melhor o cheiro das pessoas, olhar nos seus olhos, tocar no seu coração. Estamos todos quase que enfeitiçados pela ditadura da visão, onde os excesso de flashes coloridos sobre o outro e sobre nós mesmos, de uma certa forma nos limita e nos sabota enquanto seres sociais plenos que somos. 

O filósofo Leandro Konder dizia a pouco tempo atrás que a sociedade moderna estava se caracterizando "pela atrofia da capacidade de duvidar". Ele disse isso numa era pré-redes sociais. Se de fato ele tinha razão há 15 anos, e acredito piamente que tinha, e se isso foi recrudescendo, vocês conseguem notar a enorme distância, o gigantesco fosso que se formou entre o sujeito e o conhecimento? Num mundo fantasioso das mil versões e verdades, onde a produção de discursos e efeitos imagéticos  foi democratizada de forma veloz nas redes sociais, a capacidade crítica das pessoas não pode de jeito nenhum caminhar na direção oposta. Mais do que um contrassenso, seria desperdiçar uma oportunidade histórica para crescermos e evoluirmos de forma saudável do ponto de vista do conhecimento compartilhado.

Assim, agora ainda mais convicto da minha opinião, penso mesmo que deve-se mesmo liberar as biografias e tudo o mais, protegendo apenas as crianças e o que possa estar de alguma forma relacionado a chaga da escravidão que, a meu ver, deveria ser encarada aqui no Brasil como o Nazismo na Alemanha. 

Acho que, não tem mais jeito, a sociedade terá mais hora menos hora que se adaptar a essa nova realidade que é inexorável. Todos falamos o que quisermos em todos os canais e fóruns de que dispomos. Mídia oficial, biógrafos, escritores, blogueiros, cidadãos comuns sem seus facebooks e twitters, somos todos públicos e produzimos visões e versões sem nenhuma restrição ou filtro. Duvidar do que se ouve, ir checar, correr atrás das informações, conhecer melhor o ser humano por trás daquela pessoa que aprendeu "a jogar o jogo" e se produziu para consumo virtual, pode ser um grande passo civilizatório no país das adesões imediatas, com uma população de baixo grau de criticidade, das mais manipuláveis do mundo.

Os nascidos nessa nova sociedade, aprenderão a lidar com isso. Nas salas de aula os alunos serão orientados por seus mestres a duvidar de tudo, a questionar as fontes ir atrás do conhecimento, saber quem são as pessoas, senti-las mais de perto, na conversa de banco de praça, método antigo, mas que nem toda tecnologia que chegamos conseguiu inventar melhor. Saberão que tudo o que se diz, se escreve e se posta deve ser criticado. Uma nova educação surgirá, mais democrática e de qualidade. E aos mais antigos, como eu, que se incomodarem com versões fantasiosas que porventura possam ferir a sua honra, fica a sugestão daquele velho e famoso grego das palavras sábias. Quando questionado pelos seus discípulos se não iria reagir as pessoas que estavam o difamando pela cidade, Sócrates apenas disse: "Não farei nada, pois o que elas proferem não diz respeito a mim"


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