"Será que já raiou a liberdade ou se foi tudo ilusão? Será que a Lei áurea tão sonhada e há tanto tempo assinada não foi o fim da escravidão? Hoje, dentro da realidade onde está a liberdade, onde está que ninguém viu? Moço não se esqueça que o negro também construiu as riquezas do nosso Brasil.”
No ano em que se comemorava o centenário da abolição da escravatura, a Vila Isabel vencia o carnaval na Marquês de Sapucaí com uma linda homenagem ao herói abolicionista Zumbi dos Palmares. Nesse mesmo ano de 1988, a Mangueira levava para avenida, em tom de louvor e denúncia, aquela que é considerada por muitos a mais bela entre as mais belas de suas composições.
Era nossa festa popular de maior expressão trazendo à baila
uma questão que a sociedade ainda tinha muita dificuldade de olhar: a situação
dramática vivida pelo negro após a abolição da escravatura, a chamada
"liberdade vazia", onde os meios necessários para sua inserção
social não lhes foram apresentados com clareza, ou melhor, lhes foram
intencionalmente negados.
Na primeira metade do século passado, Florestan Fernandes, na contramão de um senso comum que só tinha olhos para um país miscigenado, foi um dos primeiros a mostrar essa grave situação social e humanitária que vivíamos. Depois, da segunda metade em diante, foi a vez do geógrafo Milton Santos que, indo ainda mais a fundo, procurou revelar a face cruel do “racismo tapinha nas costas" do brasileiro - onde facetas obscurecíveis do preconceito funcionam como mecanismos de controle mantenedores da desigualdade e conseguem ser ainda mais eficazes que a velha e vergonhosa chibata.
Hoje, quase trinta anos depois, o quadro da desigualdade racial no Brasil,
apesar de ainda dramático, apresenta sensíveis sinais de melhora. A
semente plantada por Zumbi cresceu e já começa a sazonar seus frutos. O negro,
mais uma vez na história, chamou pra si a ‘responsa’, numa luta de igual
teor de bravura, só que agora no plano ideológico, impulsionando ações
afirmativas de forma ousada, na raça e na coragem, fazendo acontecer.
Valeu Zumbi, seu grito forte ecoa agora pelos quatro cantos do país,
chacoalhando as bases de uma sociedade onde um dia a cor da pele não
determinará absolutamente mais nada, um dia onde estaremos de fato juntos e
misturados, o dia onde estas palavras perderão o seu sentido e poderemos finalmente
dizer: somos todos cidadãos brasileiros.
E o samba da mangueira, que começa convidando à reflexão, termina de maneira
alegre e festiva, como não poderia deixar de ser:
"O negro samba negro joga capoeira, ele é o rei na verde e rosa da
Mangueira!"